sexta-feira, 25 de junho de 2010

Girassol

Sempre gostei da noite. Pela ausência do sol ou só pelo simples fato de ser noite, a escuridão me faz lembrar de coisas que inutilmente amei. Gosto de como as crianças dormem: sono alto, profundo. Gosto também da cor dos sonhos “aquele azul acinzentado”. Pressinto na noite uma coisa mansa. Uma coisa que não defino e nem compreendo. Mas também não preciso saber o que é ou de onde vens, como eu disse, sempre gostei da noite.

Noite... Como são lindos os meigos olhos com que muitas vezes me contempla. Qualquer coisa que venha ti pode me salvar dessa imobilidade que vivo. Sabe... Quando o sol cai, eu fico praticamente nua. Parece um ato muito vulga para uma menina da minha idade.

Mas hoje está tudo diferente. Eu sinto como se giletes lambessem minha alma e sinto uma dor leve, muito leve, e, talvez por isso, mais repugnante que as outras dores.

Ouviram isso. Esse barulho? Onde está minha família? Eles estão viajando. Só restou eu e Nando... Ele me diz ouvir estrelas e que elas falam e cantam, mas só quando ele está fechado pra esse mundo, fechado no escuro, no escuro da noite que eu gosto. Escutem... É o barulho de novo. Elas estão subindo as escadas, estão subindo... Conheço bem o barulho de folhas subindo as escadas.


O brilho do meu cérebro está se dissipando e o gosto amargo do medo não me deixa pensar. O medo seduz a minha vida. Medo? Medo... Medo é medo e não tem definição ou marcação. É amarelo é marrom e às vezes um pouco cinza.

Agora meus dezoito anos viraram dezoito segundos e são todos cinza como os medos e os sonhos. Talvez esse cinza seja a cor da morte que desejo.


O sol... Nando gosta do sol. Precisa dele. O barulho de ontem, você lembra? Nando. A sala está sem portas. Parece um sonho... Sem azul, nem cinza, mas com essa brisa que me confunde a memória... Nenhuma resposta. Ouviram isso? É o choro de Nando. Mas ele não está do lado da janela como era de costume. Ouviram? São passos, passos cada vez mais lentos... Estão vindos em minha direção... Estão se arrastando entre os amarelos e cinzas dos antepassados de Nando.


Amarelo, vermelho.

O sol irradia em meu sangue um desespero doce, tão doce que...

Esses passos... Esse cheiro... Estão sentindo esse perfume? É tão melancólico e tão neurótico. Olhem, vejam. São lâminas pontiagudas e ardentes como raios do sol

Amarelo e vermelho.

Isso tudo deve ser um sonho, por causa do medo marrom, mas eu estou acordada e há muito tempo não sonho acordada.

Essa brisa de novo. Meus olhos estão sozinhos...

São apenas semente de girassol. A sala sem porta tem uma janela que fica sempre aberta e por ela dá pra ver o jardim... O imenso jardim cinza que já foi amarelo. Quando a plantação de girassol queimou, só Nando sobreviveu. Ficou só, sem seus parentes. Só ele, amarelo no meio de todo aquele cinza. Descobri que ele era especial, raro, e logo me apaixonei, o levei pra casa, o coloquei em um jarro e dei a ele o nome de Nando. O mesmo nome de um gatinho que tinha ido embora... Mas Nando não vai embora.

Vejam. As lâminas são simplesmente pétalas de Nando. E o barulho? O gatinho voltou e estava brincando com as sementes de girassol. Agora eu já consigo ver as portas. Na porta principal, Nando dança para o sol.

Medo tolo... Eu pensei que ia morrer. Amo muito Nando. Às vezes danço pra ele, mas ele nunca dança pra mim. Talvez, por isso não gosto do sol, eu tenho inveja dele.

Meus dezoito segundos viraram dezoito séculos e eu ainda sou a mesma garotinha de sempre.
Só eu e meu girassol...

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Coisa Estranha

Boa noite? Todos já se foram? Desculpe por eu ter demorado, é que... Não! Eu até pensei em não vir mais, mas não seria justo. Todos estão aqui. Alguns somente para prevaricar e falar mal, mas sei que...

Vocês já sabem o que aconteceu, não sabem? Foi uma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela; quando souber finalmente o que foi essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Não que eu tenha te faltado com a verdade, mas você me conhece, sabe que quando eu não entendo uma coisa é como se eu fosse um pássaro cego sem rumo para o vôo. “Um dia de puta esse dia que eu tive”. Prometo ser transparente, por você, por mim mesmo, como sempre tentei ser, mas por enquanto e, por favor, tente entender.

Foi com terrível esforço que vim. E isso não é mais apenas uma maneira de dizer que vir aqui significa mexer com funduras... Doem fisicamente, no corpo feito de carne, veias e músculos. Pois é no corpo que me dói... Talvez a mente tenha ficado isenta de qualquer sofrimento e dado lugar ao delírio constante que sou eu. Vejam essas duas mãos; com suas veias enxadas, feridas, cheias de sangue. Hoje pela manhã estiveram cheias de fios e tubos plásticos ligados a agulhas enfiadas nas veias. Escorria para dentro de mim um líquido,que dizem, vai salvar minha vida.

Dói muito vir aqui, mas não vou parar. A minha não desistência é o que de melhor posso oferecer a vocês e a mim neste momento. Saibam que isso poderá me matar, e que a única maneira de adiar o inevitável são aqueles fios e aquelas agulhas. Como dói não poder fazer nada... Um dia entenderei talvez.

Por enquanto, ainda estou um pouco dentro desta coisa estranha que me aconteceu. É tão impreciso chamá-la assim, a “Coisa estranha”, mas o que teria sido? Uma turvação, uma vertigem, uma voragem.

Gosto destas palavras que giram como um labirinto vivo, arrastando pensamentos e ações nos seu círculo cadê vez mais velozes, concêntricos, elípticos. Foi algo assim que aconteceu na minha mente, sem que eu tivesse controle algum sobre o final. Todos foram discretos, depois eu também não fiz muitas perguntas, igualmente discreto. Talvez eu tenha gritado... E falado coisas aparentemente sem sentido, e jogado coisas por todos os lados, talvez batido em alguém. Disso que me aconteceu, lembro somente de fragmentos tão descontínuos que... Que não há nada além dos fragmentos.

Mais havia uma maca de metal com ganchos que se fechavam feito garras em torno do meu corpo, e meus dois pulsos amarrados com força nesses ganchos metálicos. Eu tinha os pés nus na madrugada fria, eu gritava por meias. Pelo amor de Deus, por tudo que há de mais sagrado eu quero apenas um par de meias para cobrir meus pés. Embora amarrados como bicho, eu queria proteger meus pés. Houve depois uma máquina redonda feita uma nave espacial onde enfiaram meu cérebro para ver tudo o que se passava dentro dele. E viram, mas não me contaram nada.

Agora vejo construções brancas e frias além das grades deste lugar onde me encontro. Não sei o que virá depois deste agora, não sei se ainda voltarei aqui, talvez nem saiba o que é essa Coisa Estranha, a turvação que desabou sobre mim. Sei que você não compreende o que digo, mas compreenda que eu também não compreendo. Minha única preocupação agora é conseguir voltar aqui. Talvez eu esteja aqui por esforço daqueles que costumavam me visitar ao fim da tarde. Eram doces como maçãs, me olhavam com ternura, passavam a mão em meu rosto, alisavam meus cabelos como se fosso a ultima vez que nos veríamos.

Acham que serão capazes de me trazer aqui novamente? Acham que me tirarão destas grades para que eu possa ver as construções brancas e frias que estão ali além dos muros. Tenho medo daqueles outros que querem abrir minhas veias. Talvez não sejam maus, talvez eu apenas não tenha compreendido ainda como eles são, a maneira como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo. Depois da imensa turvação, a única coisa que posso fazer é falar com vocês. Escuta bem, pois vou falar no teu ouvido...

No caminho para cá encontrei tantos anjos. Bandos, revoadas, falanges. Garaós, querubins, barrocos com suas bundinhas de fora, serafins agudos de rosto pálido e asas de cetim, arcanjos severos, a espada em riste para enfrentar o mal. Mas no caminho para cá encontrei, naturalmente, também demônios. E a hierarquia inteira dos servidores celestes armados contra eles. Anjos... Eu odeio anjos, criaturas nem tão celestiais assim, alguns usam uniformes brancos, máscaras, toucas, luvas contra infecções, e há também os que carregam vassouras; baldes com desinfetante; recolhem as asas e esfregam o chão, trocam lençóis, servem café, enquanto outros verificam pressão, temperatura, auscultam peitos e ventres.

Já aqueles debochados do fim da tarde vestem jeans, couro negro, cabelos descoloridos, trazem doces, jornais, meias limpas, notícias da noite, onde todos os anjos são pardos. Trazem também recados dos que não puderam vir por rebordas, preguiça ou desnecessidade amorosa. Às vezes, eu fico sozinho tentando ver as púrpuras do crepúsculo além dos ciprestes do cemitério atrás dos muros, mas o ângulo não me favorece, então contemplo a fúria dos viadutos. Abro a janela para os anjos da noite, eles entram; homens, mulheres, crianças, vocês sabem anjo nunca teve sexo. A noite alta farta de asas ruflando, liras, rendas e clarins, despencam no sono plástico dos tubos enfiados em meu peito. Os anjos... Eu reconheço um por um, pelos passos, pela respiração.

Talvez não seja justo eu estar aqui com minhas intermináveis palavras para os amigos. Como seus cabelos são claros, lembro ainda de sua voz safada repetindo em minha orelha fria “quem tem sonho não dança meu amor”. Às vezes penso que todos vocês parecem vindos da margem do rio Piedra onde anda o menino cego e a mulher mais feia do mundo, você, os anjos, igualmente estranhos.

Eu penso rápido demais, sem relação aparente com que vou dizendo, talvez por isso ache que sou louco, mas não sou. “Os loucos fedem”. Por respeito aquilo que eu suponho fosse o caminho do inferno, não quero mais ver os anjos. Aqueles que sujam as trevas e ao mesmo tempo guardam um fio de luz, esse fio estreito, esticado feito corda bamba.

Imagino que você tenha achado minhas palavras um tanto obscuras, enigmáticas como aquelas de Saramago. Gosto sempre do mistério, mas gosto mais ainda da verdade, por isso agora vou falar claramente. Não sinto culpa, vergonha, ou medo. Voltei da Europa em julho me sentindo doente, febres, suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico, fiz um exame, aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV.

Estou lúcido pra caralho, tudo bem que eu nunca tive ideal nenhum, mas como é que eu não me cuidei quando fui dar esse rabo. Fiquei três dias bem natural, mas depois enlouqueci, não sei detalhes, por autoproteção, talvez, não lembro. Fui levado a um pronto socorro, com suspeita de tumor no cérebro. No dia seguinte, acordei de um sono drogado num leito desta enfermaria.

Depois foram 27 dias habitados por sustos e anjos, médicos, enfermeiros, amigos, famílias sem falar nos próprios anjos. A vida me dá pena, eu não sabia que meu corpo podia ser tão frágil e sentir tanta dor. Chorei, olhando através das janelas os muros brancos do cemitério do outro lado da rua. A “Coisa Estranha”... Estava dentro de mim, vi minha vida bela e fugaz feito uma borboleta que dura apenas um dia após o casulo. Pois agora há um casulo rompendo-se lentamente, casca seca abandonada.

Conto para você, porque não sei ser senão pessoal, impudico, e sendo assim preciso te dizer: mudei, embora continue o mesmo. Sei que agora compreende.

Sei também que para os outros esse vírus só dá em gente maldita. “Senhor, piedade para essa gente careta e covarde”.

Mas pra você? O que importa é a senhora Dona vida, coberta de ouro, prata e chantilly e às vezes confete de carnaval descobrindo pouco a pouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Preciso suportar e beijá-lo a boca. De alguma forma absurda nunca estive tão bem...

Coisa Estranha

Inspirado na vida de Caio Fernando Abreu